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DELÍRIOS POÉTICOS

1  Não queira ser poeta

 

Não queira ser poeta. Foi o aviso de um amigo e o que eu deveria ter dito a alguém que invadiu meus domínios para me trair. Alguém que ousou aos mistérios do coração de um poeta e questionou sua dor por mero capricho. Inconformado com a maldade de tamanha inconseqüência, hoje eu repito as palavras de meu amigo: não queira ser poeta.

É um tanto quanto complicado explicar isso e desmistificar a fantasia que os românticos conseguiram eternizar com a dor do mais profundo sentimento. O perpassar das gerações desde então remete os amantes à sedutora poesia dos versos sem o devido conhecimento de sua essência. Aos poetas, só nos servem os versos para atenuar a dor, conceder um pouco de sentido a vida e criar sorrisos. Mas sorrisos distintos dos que entrecortam os suspiros das donzelas que deliram extasiadas pela dor que desejaram sentir um dia sem saber da loucura a que anseiam e da sorte de não lhes ser permitida. É desse modo que, equivocada, a juventude alimenta a pretensão insana de compor atraída pela fascinante faculdade de sensibilizar o coração humano.

Em parte a mística é verdadeira. Somos nós, os poetas, grandes apaixonados, mas péssimos amantes. Caso contrário não estaríamos a todo instante entretidos com amores frustrados e saudades ingratas. É de fato um estranho relato e constrangido eu confesso: são mais felizes no amor os cafajestes e fanfarrões. Eles são mais másculos, de objetivos claros e, sábios, não saciam a fome para legar ao faminto vontade de comer. Sejam como eles e a ventura lhes será reservada. Não entendo ao certo por que, mas o passar dos anos nos revela que esta é a verdade.

Apesar de tudo, eu não me arrependo de ter amado, nem pelas decepções e frustrações de sentimentos ingênuos. Até por que arrepender-se é próprio dos que não sabem amar e isso não convém a um poeta. Eu sequer guardo rancor por estas traições. A perda é por si só um peso muito grande para meu coração atrever-se também ao ódio. O ódio, na verdade, nunca me foi sentido. Um pouco de mágoa talvez, mas por ter errado e repetidas vezes repetido os mesmos erros. Isso não é grandeza, é tolice e aquele que ainda assim deseje perdoar mais e amar melhor, eu aconselho que não tente ser poeta, procure ser cristão e ao menos de deus você receberá algo em troca.

É, a mocidade sempre procura algo em  troca e por isso eu a advirto. Não questiono seus valores, mas atento que sua busca será frustrada porque sequer reconhecimento a poesia concede. Outros escritores têm melhor sorte: colunistas de jornais ou comentaristas esportivos, escritores de auto-ajuda ou humoristas. Eles conseguem sustentar suas famílias com dignidade, sem precisar manchar com lágrimas o papel ou enfrentar a própria alma. Eles não precisam chorar, com muito menos lhes é legado o sucesso.

Já os trovadores de nossa geração, esses caminham pelas ruas tentando recitar seus versos, mas inevitavelmente terminam suas noites desolados em bares ou trancados em seus quartos calados. São ambulantes, médicos, funcionários públicos que se torturam numa rotina fatigante sabendo que sua arte estará para sempre escondida em velhos cadernos sem nunca ser revelada, sem nunca obter reconhecimento e eu não quero que a mocidade se atreva a essa dor, não quero que ousem a poesia.

Muito pouco foi legado ao poeta, pouco além de uma maldição tremenda. Caminhar solitário pela multidão e ser o porta-voz de seus lamentos. Ser aquele que chora pelos cegos e famintos, pelas mães que não tiveram filhos e por si mesmo. Lamentar sempre que possível e se culpar quando não atrever-se ao pranto; e sentir nojo por saber que talvez tudo isso seja mentira e desesperar-se por desconhecer sua própria verdade. Que lamento profundo, que agonia desesperada! Maldição a que poucos homens foram fadados e nós os chamamos de poetas apesar de desconhecermos sua alma. É por isso que eu advirto aquele que por isso anseie que não o deseje, não queira ser um deles.

Essa é a verdade inerente a todo poeta. O que se escreve além disso é fantasia, mas, se da fantasia nasce a poesia, só a fantasia definirá seu criador. Só a fantasia explicará nosso imenso infortúnio, pois, se esta maldição nos foi legada, acredito sermos nós, os malditos, de Deus os protegidos. Pois se não for verdade, o que mais valerá a pena? Nada mais fará sentido e eu prefiro acreditar em mentiras a pedir perdão por meus erros e por crimes que paguei sem ter cometido. Mas se existe um Deus misericordioso que ouve os gritos de seus filhos através de nossos versos, ele não castiga os erros do poeta. Antes recorre a nossas vozes para conhecer o âmago do coração humano. Por isso, um único poeta redimirá toda a humanidade, ainda que só reste um, enquanto o último poeta falar de amor ainda existira esperança para a humanidade.

Mas, por enquanto, caros meninos, não queiram ser poetas.



 

2  Um dia não existirão mais cartas.

 

Um dia não existirão mais cartas. Elas já foram ultrapassadas porque temos o e-mail. Eles são tão rápidos, a Internet é rápida e seus programas tão velozes! Afinal de contas, estamos com pressa, não há tempo a perder com cartas.

Foi o que pensei quando me vi ansioso pela chegada de um e-mail que não veio. A minha mensagem estava ali, no computador, sem resposta, composta de frases curtas e objetivas cheias de abreviações como vc, qnd, e vários !!! para tentar passar alguma alegria. Tantas coisinhas que se esforçam para passar emoção, mas não adianta porque o Times New Roman é muito impessoal e com ele as palavras ficam frias demais.

É uma pena, mas ninguém parece se importar com isso. O importante é como as coisas estão velozes, mas eu não me acostumei e para mim tudo parece tão estranho! Entristece sentir isso. Eu não queria que fosse assim, não desse jeito.

Esse discurso é por demais conservador e os futuristas não estarão errados em dizê-lo. Até por que eu confesso ser ultrapassado. Sou ultrapassado como poucas pessoas que ainda ouvem Belchior, que escrevem poesia e que ainda se preocupam com o que é certo. Sou ultrapassado a ponto de chorar às vezes, mas me contentaria com correspondências via net se elas conseguissem guardar algo das lágrimas, mas elas não podem porque são práticas, destituídas por completo de poesia. O e-mail foi uma grande perda para a poesia.

Então virão dias sombrios em que não existirão mais cartas de amor. Em qualquer site se encontrará bichinhos animados e imagens digitalizadas de flores e corações na forma de programas facilmente anexáveis a mensagens de e-mail. Só corações digitalizados, porque os desenhados a lápis em cartas perfumadas por doces aromas estarão extintos. Bem como as juras de amor e confissões envergonhadas dos amantes e, de fato, será uma grande perda para a poesia.

Então, quando este dia chegar (fatídico dia!), ao menos as cartas de amor eu farei questão de registrar sobre o papel para que os carteiros possam levar sonhos e não apenas contas; para que os armários de uma menina possam esconder segredos que a emocionarão em qualquer dia de sua vida porque estarão eternizados para mostrar a seus netos que um dia os homens souberam amar. Sim, ao menos as cartas de amor eu farei questão de escrever e desse modo a poesia se manterá viva e ainda poderei me considerar poeta.



 

3  Medo e coragem

 

Ao longo das eras a espécie humana evoluiu de um estágio primitivo para este ao qual estamos subordinados a nossa razão. Hoje ela rege nossas ações, mas não conseguiu suprimir instintos selvagens que por muito tempo nos mantiveram vivos e que a todo instante tentamos escondê-los em vão. Dentre eles, uma emoção fez a diferença entre a vida e a morte de toda uma espécie: tal foi o medo.

O medo é o sentimento que nos impede de arriscar, nos previne dos riscos. Se há possibilidades de perda, lá está ele, lembrando do lado ruim de qualquer situação ou atitude. Quanto maior for o perigo, mais forte será nosso medo e menor nossa capacidade de enfrentá-lo, mesmo quando preciso.

Muitas vezes desejamos algo de maneira tão profunda que o medo é pequeno perto de tal desejo. Nasce aí a coragem, sentimentos opostos que constantemente se chocam. Um ousado, o outro prudente, mesmo assim, ambos se apegam à razão ou a emoção para preponderar.

O medo pode mostrar sua face de diversas formas: através de fobias, do receio, do susto..., mas a coragem se manifesta de apenas uma forma: pela ação do homem destemido que é impulsionado a agir a despeito de toda e qualquer adversidade. É nesse momento que ele vai mais alto, vai além do próprio gênero humano ao valer-se da emoção mais nobre que alguém pode ostentar em seu peito.

Talvez um dia nossa razão evolua a ponto de superar tais sentimentos provindos de nossos instintos básicos de sobrevivência. Talvez, mas estamos distante disso. A mente humana é muito complexa, um livro intrigante com páginas ainda em branco e distintas entre si porque nenhum homem é igual a outro. Sentimentos e desejos nos distinguem e nessas peculiaridades crescemos, pois são elas que nos diferem  e são as diferença que nos fazem fortes. 



 

4  João Cândido

 

João Cândido Felisberto nasceu em 1880, na cidade de Rio Pardo, RS. Sentou praça como marinheiro na MB numa época em que o marinheiro não podia pedir baixa nem se casar nos primeiros 15 anos de serviço, resquícios da escravidão que existira e a estes, na sua maioria negros e mestiços, de classes não privilegiadas, ainda atormentava. Apesar de tantas dificuldades, João Cândido destacou-se em sua capacidade e dedicação nos serviços de bordo, indo, inclusive, cursar na Inglaterra para especializar-se como reconhecimento dos superiores a seus bons serviços.

No início do século 20 o Brasil ostentava uma grande e soberana Marinha onde interesses se chocavam com características atrasadas como racismo e castigos corpóreos, algo inconcebível a uma Marinha moderna e de tamanha grandeza que atingira a posição de terceira maior potência naval do mundo.

Em 1910, um marinheiro do Encouraçado Minas Gerais recebeu a pena de 250 chibatadas quando a punição máxima observada era de 25 para contravenções muito graves, decisão intransigente e incriteriosa cometida por um oficial. Os marinheiros julgaram inconcebível ser aplicado desumano castigo a alguém que doa sua vida de modo abnegado pela grandeza da nação. Inconformados então, sob o comando de João Cândido, eles ergueram suas armas, não por desordem ou ganância, mas por acreditarem que lhes assistia o direito de servir sua pátria com dignidade e eles não se omitiram. Naquela noite, contra a tirania e os maus tratos, às 22 horas, a corneta do Encouraçado Minas Gerais não entoou o toque de silêncio e sim o toque de combate.

João Cândido, o qual a imprensa exaltara sob a alcunha de “Almirante Negro”, enviou as exigências dos amotinados ao gabinete da república. Eles clamavam por melhores condições de vida, de trabalho e pelo fim dos castigos corporais, ademais, a anistia para os revoltosos.. Era o grito de homens simples desejosos pelo fim da velha ordem, que se fazia insustentável frente às mudanças que os novos tempos exigiam.

Eles foram atendidos e traídos. As palavras daqueles que manipulam o sistema se mostraram corruptas e carregadas de falsidade. Aqueles homens que lutaram por justiça foram presos e a maioria foi punida com a morte. A bordo do “Satélite” boa parte deles foi enviada para a Amazônia onde foram vendidos como escravos para os seringais, realidade abominável, em pleno século 20, a Marinha se servia de um de seus navios para fazer escravos aqueles que a serviam. João Cândido foi preso entre os outros líderes da revolta numa cela na Ilha das Cobras onde foram submetidos à tortura e humilhações. Ao passar de dois anos, daqueles bravos, somente dois haviam sobrevivido. João Cândido foi um deles.

João Cândido fora internado em um manicômio e posteriormente constatada sua sanidade mental. Julgado pela justiça militar, a verdade foi reconhecida e preponderou. Ele foi inocentado de crimes contra a nação por sua luta Ter almejado apenas e unicamente a justiça. Esse deve ser o interesse maior de qualquer um que serve este país. Os castigos corporais foram abolidos da Marinha, era o fim da chibata. Aqueles homens que ergueram suas armas alcançaram seu objetivo, mas a que preço? Um preço caro: pagaram com a vida, mas todo sacrifício é válido em prol daquilo que se acredita. Eles lutaram a boa luta e foram vitoriosos. Nada foi em vão.

Em certa noite de 1953, um homem negro e velho remou de uma canoa lentamente da Praça 15 até o Arsenal da Marinha onde se abraçou junto ao casco do Encouraçado Minas Gerais que poucas horas antes fora desativado. Num gesto singelo de carinho, ele o beijou, demonstrando todo amor que nutria para com aquela nave que por anos guarnecera em seu valor. Com simplicidade ele ensinava a respeito do apego as coisas do mar, próprio de todo marinheiro que se orgulha daquilo que faz, da pátria que serve.

Àquele homem velho, um marinheiro dirigiu palavras de gratidão dizendo: 

— O senhor é a história viva da Marinha. Graças ao senhor hoje somos bem tratados, comemos bem e temos soldo regular. Obrigado!

Gratificante foram as palavras do jovem marinheiro, por elas foi válida a luta, foi válida a perda. Essa fora sua missão e ela foi cumprida com êxito.

Hoje sua luta serve de exemplo aos jovens homens do mar e de inspiração de que o dever está acima da própria vida e que a luta vale a perda. Há coisas pelas quais vale a pena morrer e a pátria é uma delas, a liberdade também. No ano 2000 não há espaço para tradições ultrapassadas de maus tratos e essa imagem não convém a uma Marinha moderna e dinâmica no alvorecer do século 21 que preza o homem que por ela se doa. Trabalho, amor pelas coisas do mar e justiça. Os ideais de João Cândido retratam bem o que a Turma 98 espera da Marinha, o que a Turma 98 fará da Marinha.

João Cândido terminou sua vida como comerciante ambulante no porto do RJ, ao lado do mar e, a despeito da condição social, levou consigo a certeza do dever cumprido. Ele faleceu em 1969 na cidade do Rio de Janeiro.



 

5  Não, eu não tenho uma musa inspiradora

 

Não, eu não tenho uma musa inspiradora, não tenho um amor platônico, mas 300 feridas que ardem em meu peito a cada lembrança e por elas ofereço minhas noites e canto canções desditosas de tristeza profunda.são lamentos que rendem homenagens sinceras a amores pelos quais eu daria tudo, sem não tanto receber em troca.

Um grande erro talvez, mas prefiro continuar errando assim. Não espero do amor uma retribuição honesta. Seria egoísta e mesquinho permitir-me sentimentos sob a condição de justa retribuição. Isso é não ser digno do amor, pois impor-lhe condições é desde logo diminuí-lo e fazê-lo pequeno e miserável e esse amor eu não quero.

Amo de forma incondicional e me submeto a duras penas pelo atrevimento de ousá-lo. Insisto na ousadia porque espero do amor sua glória e por esta desprezo a mediocridade de amenidades. Quero sentimentos pungentes e arrebatadores, que me lacerem o peito, mas que me ergam ao céu. A queda é dolorosa? Eu resistirei. Sua dor só nos mostra o quão alto fomos e se for preciso tombarei mil vezes e em cada derrota saberei mais intensa minha ruína, mas que a ruína não seja em vão como nenhuma dor é vã. Que ela permita sonhos e não apenas lágrimas; que suas lembranças revivam sorrisos e não apenas mágoas; e que em noites ingratas quando tanto as lágrimas como a mágoa conspirarem contra mim, que elas tragam consigo uma inspiração serena que me permita cantigas suaves de paixão e odes de saudade.

Eu estou disposto a arcar com esse doloroso legado por não desejar que o silêncio permeie a seqüência infinita de dias de labuta onde a fadiga e a ansiedade figurem como únicos impostores que me perturbem. Não quero aspirações somente pelo tangível, não quero mensurável o desejo de minh’alma. Quero coisas maiores que o próprio homem e que elas me tomem em sua plenitude e me façam seu servo. Não quero motivar-me apenas com parte e acredito que pessoas grandiosas que são capazes de amar não deveriam se contentar com pouco, até por que isso é próprio quem não sabe amar e a covardia não pode ser grande o bastante para nos privar disso.

Por hora o verso é escasso e a lírica pequena, mas virá o dia da inspiração maior e a poesia será plena. Então eu escreverei mil canções e meus versos apaixonados comporão os sonetos mais belos que já foram escritos. Basta-me tão somente que meu coração arisco se convulsione em sensações, talvez elas não sejam boas, mas que sejam intensas porque esta é a prova de que foi valoroso, pois só valerá a pena viver se for intensamente. Que iatista, senão o novato e inexperiente , opta por velejar na tranqüilidade das águas cativas da lagoa? Antes preferimos a incerteza dos mares, domar suas tormentas é conquistar sua imensidão. E vamos mais alto! Subi às alturas, conhecei as estrelas: é preciso ser estrela para conhecer sua solidão!

Reserva-nos o destino estes mistérios entre suas glórias e desventuras. Coragem! Esquive-se a covardia, supere o medo; afronta-nos estes desígnios impiedosos sob a bandeira da dor e da saudade. Mas quem disse que seria fácil? Não é suave o caminho que conduz ao céu. É antes tapeado de enganos e frustrações e nem por isso isento de fracassos, mas diante desses fracassos crescemos e ao superá-los nos erguemos melhores e amadurecidos de coração. Por isso, se dê a chance de errar e se perdoe pelos erros cometidos como uma mãe perdoa o filho que erra não uma ou duas vezes, mas trezentas, mil vezes mais até que uma inspiração maior nos envolva e contagie nossas vidas para nos fazer cantar uma única e alegre canção a que só se permitem os corações apaixonados para enfim cicatrizar todas as feridas de amores passados e transformar o que um dia foram mágoas de dor, nas melhores lembranças de nossas vidas.



 

6  Primavera

 

Primavera. Todos os clichês sobre a estação das flores são verdadeiros. Mas eu gostaria de dizer um pouco mais sobre isso porque gosto de primavera entre tantas outras coisas como sorvete e chocolate, livros e música, praia e futebol; mas de primavera o meu gostar é diferente. Eu gosto de uma forma suave como quem gosta de flor. Como eu que gosto do perfume adocicado de alfazema sem saber ao certo por que.

É uma pena, mas as pessoas não permitem que se goste de algo assim. Elas vão lhe perguntar o por que e não se atreva a dizer que não sabe porque elas insistirão: “Tem que haver uma razão, algum motivo fez com que você gostasse.” O gostar simplesmente é pouco para elas, é preciso haver uma razão lógica e pessoas assim atingem um lugar de destaque em nossa sociedade que as reveste de credibilidade e respeito por cultuarem a lógica e o pragmatismo em detrimento da sensibilidade. São estes heróis os modelos de sucesso a nós apresentados todos os dias e sem perceber lhes rendi homenagens ao ser questionado das razões de minha preferência:

 “Qual o motivo? Algo a difere das demais para ser sua predileta.”

Perguntas tão sensatas vindas de pessoas sérias merecem respostas no mínimo razoáveis. Então meu raciocínio formalizou argumentos para satisfazer aqueles questionamentos. Foi assim que eu falei sobre o sol que volta a brilhar depois dos meses chuvosos de inverno. Já não é mais frio e nem o calor atinge às temperaturas infernais do verão, mas é suficientemente quente para se ir a praia. O clima também nos convida a sair às ruas, que se enchem de crianças e casais de namorados. É no final da primavera que eles entram de fé rias para dividirem as praças com os trabalhadores cujo horário de verão instiga a brindarem entre amigos nos bares da cidade até um pouco mais tarde. São estas as ruas da primavera de minha juventude. Sempre repleta de flores e gente feliz. É este o colorido que eu sinto falta nos dias frios de inverno.

É verdade que nem todos compartilharam de minha opinião, mas a persuasão dos argumentos era convincente e eles concordaram sem que em momento algum tomassem conhecimento de uma verdade que é inerente a mim, a mim somente. E quando chegar a primavera, talvez eles entendam, mas não conseguirão sentir porque buscam compreender o que não tem resposta. Assim fundamentam o sensível e o diminuem porque colocam os sentimentos subordinados a lógica fria da razão. E, dessa forma, se alguém lhes perguntar se gostam de primavera eles saberão responder e talvez seja até uma resposta bonita, que seria muito mais bela se não fosse mentira.

Com meu discurso eu os traí porque fiz com que entendessem, mas não permiti que sentissem. E eles permanecerão presos a seu mundo embrutecido, tapeado de mentiras complexas e razoáveis, sempre muito bem fundamentadas, como costumam ser as mentiras. Mas eu dispenso por completo a sensatez das falsidades. Anseio pela simplicidade de verdades sinceras que muitas vezes são silenciosas e eloqüentes em seu próprio silêncio. Este que os corações embrutecidos são incapazes de ouvir e por isso eu não tentarei novamente explicar.

Hoje buscarei somente a estas verdades, ainda que eu não seja compreendido, apenas pelas poucas pessoas de sensibilidade que terão de meus olhos a empatia que lhes trará respostas ainda mais profundas. E a eles meus olhos confessarão meus sentimentos mais sinceros e nossas almas se julgarão irmãs e taremos necessidade um do outro. São esses os amigos que eu quero ao meu lado, quero amar essas mulheres e tendo-os ao meu lado nas tardes de primavera, eles saberão porque estou feliz sem que eu precise dizê-lo, pelo mero fato de estarem comigo e espero estarmos sempre juntos por todas as primaveras que eu venha conhecer.



 

7  Nós não nos conhecemos

 

Desculpe-me, senhora, mas deve estar havendo algum engano: nós não nos conhecemos. Seu rosto me parece doce e suave, sem dúvida teria sido muito interessante, mas nós nunca nos encontramos antes. Seus olhos brilham de expectativa, parece que há um anjo eloqüente e apaixonado dentro de você que fala através deles e eu lamento frustrá-lo, mas nós certamente não nos conhecemos.

Espere um pouco, não parta! Talvez eu esteja enganado. O desenho de sua face me parece familiar... é claro que já estivemos juntos, em alguma época distante, mas eu não lembro seu nome. Foi muito pouco tempo, uma única semana, o que é isso no meio de tantos anos!?  Eu conheço tanta gente, não há como lembrar. Tenho comigo impressões de sentimentos fortes, mas eles se confundem. Houve bastante alegria, mas houve também tristeza... já faz muito tempo! Desculpe-me, senhora, mas eu não lembro seu nome, na verdade, é impossível lembrar seu nome.

Ah! Quem eu quero enganar? É claro que eu lembro seu nome! Sobre ele eu chorei diversas vezes e sua face nunca me fugiu à memória. Suas lembranças estão vivas aqui dentro e elas machucam toda vez que vêm a tona. Eu lembrarei seu nome até o último dia de minha vida e reconheceria sua face ainda que o tempo a desfigurasse, mas você permanece bela.

Mas por que retornou? Não sabe a dor que tua partida causou? Tentei curar a ferida, mas a cada lembrança sua ela ardia e hoje a cicatriz se abre completamente com tua presença. Para você foram apenas dias, mas para mim eles foram por demais intensos, mas tudo pareceu tão pouco. Ficaram marcas profundas e você se fez ausente todos esses anos em que as chagas ardiam. Lamento, mas foi isto que restou, muita mágoa em meio à dor que tua partida causara. Hoje aquela alegria passageira revela seu real valor e eu a sei cara demais para me tornar a única vítima do equívoco que foi teu nome. Deixe-me com minhas perdas, não tenta ressarci-las, você não pode. Obrigado por ter vindo, mas não insista, siga seu caminho...



 

8  Entendimento

 

Você me pergunta sobre o mar e eu me calo e meu olhar se perde e eu não respondo. Então você se cala contrariada porque talvez desejasse o silêncio e não obteve nenhum deles. Desse modo fica sem saber que eu também gostaria de falar, mas não sobre o mar, talvez sobre o céu. É assim que permanecemos unidos por palavras que nunca se encontram em sentimento e não nos entendemos. Mas duas pessoas estarão sentadas nesta mesma praia unidas em uma oração silenciosa. Sim, elas se calarão, mas suas almas brincarão radiantes entre o céu e a terra num entendimento muito além da compreensão humana. Onde se perdeu este silêncio que aqui nunca foi ouvido? Estará em nós o mistério deste entendimento sublime? Talvez ele ainda esteja oculto sob o pulsar de nossos corações imaturos, mas, se ele não estiver, de certo nunca estará.



 

9 Havia me esquecido

 

Havia me esquecido come ela era delicada. Tinha esquecido como ela conseguia ser doce e sua voz suave. Alguns dirão que eu sou um apaixonado ou que aquele amor ainda se guarda latente em meu peito. Homens sensatos! Estarão corretos, mas isso não muda o fato de que aquelas virtudes que fascinaram minha alma ainda estão lá e cumulam aquela mulher de forma admirável.

Que encantos envolventes! Feliz do homem que tiver a honra de estar ao seu lado. Eu a tive, sem em instante algum possuí-la, mas cada um daqueles dias foi magnífico. Memorável entre as lembranças mais preciosas de um poeta e por tudo isso ela ainda está aqui, a compor a paisagem poética onde os versos se guardam para vir à tona no instante de inspiração.

Quem já caminhou por estes montes sabe como são altos e conhece o colorido de suas flores. Eu as cultivo, ainda que não sejam minhas, mas com a alegria de quem se admira do que é belo. Quisera fazer moradia nestes gramados. Então eu teria outro cantar e de minha boca não se ouviria nada além de poesia.



 

10 Desconcertado

 

O coração bate forte. Estou desconcertado, no sentido propriamente dito da palavra. O falar se faz sereno e não entendo por que. Talvez para disfarçar o tumulto e não transparecer pensamentos de velocidade tempestuosa. Não adianta: embaralho-me com eles. Gaguejo e não raro perco a coerência do discurso. 

Pausa. Uma respiração profunda tenta reorganizar tudo. Ela age em meio a um silêncio desajeitado que talvez pela ingenuidade soe eloqüente, mas não sem o constrangimento de parecer menino (assustado com as batidas fortes de seu coração apaixonado!).



 

11 Cientificismo

 

Que navegante ousaria dizer que conhece os segredos do mar? O mesmo oceano que revela belezas fascinantes esconde mistérios sob seus horizontes distantes. Eu também não me atrevo e calo. É tarde de Sábado e a TV é a única companheira das horas solitárias que se sentam ao meu lado intransigentes. Os programas de auditórios, os debates e entrevistas; quantos convidados ilustres, tantos doutores com tanta explicação para tudo! Os velhos seriados, será ainda o espaço a fronteira final? Ou esses doutores já possuem a explicação para sua escuridão profunda? Quisera soubessem, quisera desvendassem o enigma dos astros, então eles teriam a cura para a melancolia que assola minha alma nas noites de luar intenso e poderiam explicar porque as luzes das estrelas refletem saudade no fundo dos meus olhos desditosos.

Não, eu não acredito que conseguiriam porque eles dominam a física e conhecem todas as suas leis, mas a alma humana ainda lhes é um mistério. Sempre será, mas não posso subestimá-los. Eles são pretensiosos e talvez um dia se atrevam a fazê-lo e eu temo por isso. Não quero que alguém lance seu olhar científico sobre meus sentimentos, sobre meus medos e frustrações para avaliá-los com uma suposta técnica acadêmica.

É lícito fazê-lo quem para tal se servir de mãos carinhosas e um olhar sereno, mas isso não se aprende nos bancos das universidades e os grandes doutores entendem bem pouco sobre isso. Por essa razão eu peço que calem os psicólogos. Por favor, peçam que eles se calem, eu não quero ouvi-los. O mundo seguiria bem sem os psicólogos, sem seus teatrinhos e fitas coloridas. Calem suas perguntas, eu não quero ouvi-las. Não se atrevam a estudar um coração com a técnica que lhes foi ensinada.

Quisera os catedráticos concordassem comigo, mas eles já concederam o aval para que os homens da ciência reescrevam a história e trilhem o destino da humanidade. Eles nunca saberão, mas isso foi uma grande perda para o gênero humano. São eles hoje, os cientistas, a vanguarda de tempos sombrios que estão por vir. São físicos e psicólogos, psiquiatras e biólogos, são todos os teóricos e eu temo suas palavras sábias e seu discurso fundamentado.

Sim, eu temo seus estudos e cada segredo que desvendam pela mística que lançam por terra. Temo pelas alterações genéticas e as características adaptativas do fenótipo. Temo pela possibilidade do caos nas inconcebíveis equações dos meteorologistas. Temo que o pragmatismo do método científico empirista destrua o sonho como um dia a geração espontânea foi desacreditada. Temo que o parnasianismo maldito, com a métrica perfeita de seu verso prático, ouse relegar o romantismo ao passado e aprisione os últimos espécimes deste gênero esquecido nos entediantes programas de TV das tardes de Sábado.

 


 

12 Juramentos

 

Quem atravessa a Serra das Araras encontra um vale de beleza admirável. Após a 2ª Grande Guerra uma usina se instalou por lá. Ela é gigantesca e muitos homens doaram suas vidas para erguê-la. Ainda mais vidas se passaram entre suas paredes de maneira fiel. Os jovens que caminham por lá sabem que seus pais e os pais de seus pais trabalharam ali, sob o mesmo calor e a mesma fumaça tóxica de suas chaminés acinzentadas.

Toda uma cidade surgiu em torno dos muros daquela fábrica. Sua gente acredita que se a usina desaparecer a cidade também morrerá. São pessoas que cresceram regidas pela chama imensa que queima resíduos tóxicos no topo da chaminé maior. Este fogo que arde incandescente ilumina a noite daquele vale como o luar e pode ser visto além dos limites da cidade. Perante a égide de tal colosso eu fiz uma promessa, eu jurei sempre lembrar.

Aconteceu assim, no topo de uma colina, sem o olhar admirado de testemunhas e sem a formalidade de requintados rituais como é próprio dos juramentos. Desde os tempos mais remotos eles são proferidos em cerimônias solenes. A grandeza destas solenidades os reveste de importância e quanto maior a formalidade de seus rituais, mais credibilidade é aferida a suas juras. Todo um cenário de beleza e encanto é erguido no intuito de perenizar compromissos que, infelizmente, estão fadados ao fracasso.

Ainda assim eu jurei, apesar de saber que os juramentos não costumam ser sinceros (quase nunca são!). É assim com os militares perante a bandeira; os bacharéis em suas formaturas; os iniciados das seitas secretas; as testemunhas nos tribunais; e mesmo os amantes sobre o altar. Suas juras são proferidas em rituais cuja formalidade torna solene palavras que não são capazes de se cumprir. É sempre assim: nossos soldados já não estão dispostos ao sacrifício da própria vida; os doutores esquecem seus ideais no cotidiano da vida urbana; os neófitos não vislumbram a responsabilidade que assumem; e as testemunhas... Ah, as testemunhas! Do que vale o juramento das testemunhas?!

Quanto aos amantes, de todas as promessas são dignas de maior crédito suas juras apaixonadas. Porém as traições e o divórcio revelam como os juramentos podem ser frágeis. Ah, imaturos corações! Ninguém poderá acusá-los de insinceros, mas suas palavras são voláteis e o tempo as dissipa. Só resta àqueles que as ouvem, em silêncio compreender a intensidade de seu sentir e perdoar suas doces inverdades.

As mulheres traídas e os homens de coração partido sabem disso. Eles se lembrarão dos juramentos com rancor e serão incrédulos frente às declarações mais sinceras de amor e as julgarão suspeitas. Tudo porque suas promessas foram seladas sobre a areia incerta do deserto, onde a brisa suave as apaga e a tormenta tempestuosa as destrói. Eles confiaram na natureza humana, esta serpente cujos sonhos se voltam contra seu senhor e seus intentos perecem no inverno. Nada é mais incerto e tolo será quem enveredar por este caminho ingrato.

O erro em que incorre estas almas é de desafiar o próprio gênero humano. Quem há de subordinar o desejo e sobrepujar seu medo mais secreto, estes dois impostores? Extrema ousadia, mesmo aos mais sábios. Por isso, incauto, não se atreva a desafiar sua própria natureza com palavras cujo tempo por si só busca ao desacerto.

Em muito difere e não há qualquer cerimônia quando, no primeiro abraço, uma mãe jura fidelidade ao filho; o navegante abençoa sua nau e lhe jura um servo devoto, também ao mar, ainda que lhe seja hostil; e, distante, a saudade é a jura maior do viajante ao lar. Todos juramentos de valor e suas palavras não se perdem ao vento. São sublimes e distintas daquelas que se vão, quando as poucas que restam ferem seus pais. Cala, pois aos corações ariscos outra voz fala mais alto.

Eis as juras mais sinceras. Sem rituais solenes e a alma lhes é amiga. A natureza se inclina em cumpri-las e chora seu fracasso. A estas juras eu me atrevo e nelas confio. Foi assim no alto daquela colina, porque eu tive certeza que me lembraria e dessa forma eu jurei. Ainda que eu não desejasse, eu me lembraria e, enquanto aquele fogo arder, eu me lembrarei.



 

13 Talvez chegue o dia

 

Talvez chegue o dia, menina, mas por hora vou plagiar a mim mesmo e escrever roteiros de lembranças e saudades. Mas talvez venha o dia, então meus olhos verterão lágrimas e sangue e talvez você me tocará novamente. Talvez eu sinta o vazio em que a noite perdura e suas recordações resplandeçam a ponto de colorir as estrelas e conceder fantasias aos sorrisos cansados e cores sem vida.

Mas por ora não. Deixe aqui a mágoa a preencher meu passado e requintar meus versos. É ela quem compõe a poesia, é quem me mata e quem me faz viver, como em ti eu vivi e morri um pouco. Então permito-me a dor, por vezes silente, contundente às vezes. O legado da tormenta devastadora que foi teu nome.

Mas logo amanhecerá e eu ainda estarei aqui, entorpecido. O corpo saciado em detrimento da alma e o passado buscando a liberdade de um grito que silencio. Calado me martirizo e saboreio lentamente o que é dor. As chagas, as cores desbotadas e os anos que envelheci: muito foi perdido, muito perdi. E assim sou num mesmo instante o castigo e o castigado, o andarilho de coração cansado com saudade das estradas que deixou para trás . Deixá-las ir.  A marca das feridas sob os pés descalços, as lágrimas nos olhos. A estrada e seus auspícios, como mentiras que tentam me convencer que não, mas não tenho medo. Senão da escassa poesia, de calar meu verbo e já não mais poeta só restar-me a dor.

Então virá o dia, menina, mas que ele não venha. Eu levo a maldição e bem a guardo, é a forma de ter o mal remediado, o pecado redimido e de alçar a glória. A mente ensandecida, eis o delírio do poeta e seu torpor. Ainda anseio em meio a esperanças vãs e frustração. Enquanto a noite for fria esperarei, mas não dê luz às estrelas, não me diga seus nomes. É no desejo de sabê-los que me permito olhar o céu.

Calo, não insisto e guardo, tenho o sabor do beijo e da partida, tenho as lágrimas e a dor, tenho a poesia e disto sim me basto. O resto é fúria e cansaço, é a perda que deixaste e que contribui em demasia. É minha tristeza, melancolia minha. Marca mais notória de minha poesia: não podia ser verdade... dois astros não se erguem sobre o mesmo céu. Leva a alegria em teu formoso sorrir essa encantadora aurora, essa sublime cantiga. Em tua face um desenho e o paradoxo dos dias cuja compreensão o horizonte esconde. E eis que jaz escondido entre os traços emoldurados pelo púrpura crepúsculo dos cachos, cachos que foram meus um dia, mas o dia se foi e a noite é fria e dolorosa.

Necessitas cantos e cantigas, necessitas sonhos e encantos, então prossiga. Eu fui teu pai, fui teu avô, fui tua amiga. Fui o toque aconchegante em doce melodia. Por vezes mentira, mas por proteção sincera como o porto e a marina, como o farol que demanda o porto e as cantigas de ninar. Mas anoiteceu e adormeceste e já não há estrelas. Então parti quando a partida já nos era dada, já me era aflita. Prepare pois teu coração que a noite é fria. Por ora não. Que a alegria de meu sorriso e o calor de meu coração te confortem: não mais preciso deles. Que te guiem e te guardem para que a tranqüilidade serena da noite seja tua irmã. Vá! Apascente tua alma, mesmo sem saber que velei teu sono, mas os anjos me renderam e eu parti. São essas criaturas celestes que hoje guarnecem o espaço deixado por minha solidão. Mas isso não importa, que te protejam e te guardem, pois eles são contigo e, ainda que não lembres, ainda que esqueças, eu também o sou. 



 

14 Rimas

 

Quão estranho é o coração do homem! Quem explicará os seus segredos, quem desvendará os seus mistérios? Ela se sentou ao meu lado e me tocou com ternura, que sedutora mulher! Seus olhos, pequeninos olhos, se fechavam quando ela sorria e tal sorrir embalava os anjos que a cortejavam como súditos. Eu fui um deles e tive alegria em servir tão bondoso coração. Que toque suave, delicadas mãos! Quisera senti-las por toda noite e render-lhe homenagens e cobri-la de beijos. 

Sim, delicioso beijo em saborosos lábios, mas nem tudo foi verdade... o corpo se contenta com tão pouco agrado. A alma não, ela é caprichosa em seus mistérios que ao próprio coração do homem mantém alheio. E ao lado de tão formosa donzela provou seus caprichos e não nos permitiu o sublime entendimento sob o qual as almas se confortam ao reconhecerem-se irmãs e compartilharem os seus anseios por si mesma.

Ainda assim eu tentei. Entrei por dentro de seus olhos e percorri seu peito desesperadamente, mas não alcancei sua alma. Nós nos tocávamos e nossos lábios se beijavam, mas nossos espíritos mantinham-se distantes e miravam o horizonte em busca daquilo que não víamos. E no ínterim desse momento que se estendeu entre o infinito e o passageiro ouviu-se o lamento de nossas almas que sentaram e choraram pelo insucesso de nossas aspirações.

Dessa forma nos distanciamos, distanciamos o suficiente para que eu pudesse tocá-la sem no entanto senti-la. Em momento algum ela foi minha e por não ter sido naquele instante, eu tive a certeza de que jamais seria. Isso doeu, como a dor do náufrago que tendo a terra à vista, já não tem forças para nadar. Foi  como a frustração do poeta pela rima que não aconteceu e eu sinto quando acontece. A diferença é clara e precisa. Distancia-se do que confunde o homem entre o medo e efêmeros encantos  que buscam saciar carências e expectativas. São todos eles egoístas e mesquinhos porque não vão de encontro ao outro, mas tão somente a satisfação de suas próprias necessidades. Engana-se porém, porque a pequena razão do homem não raro confunde estes extremos e entre eles se perde e se deixa ferir em bem pouco tempo.

Sim, eu conheço isso muito bem. Conheço as rimas, dos poemas e da vida, todas elas: alternadas, interpoladas e consecutivas; preciosas e perfeitas; pobres e ricas. Elas surgem entre versos, surgem entre vidas.e eu sei quando acontece. O marinheiro conhece os ventos, o pintor as tintas e o camponês o lavradio. Eu sinto. Detenho esta prerrogativa desde o dia em que a lírica ungiu meus lábios e me tornou poeta. Desde então as almas dos profetas que não se eternizaram através da arte se sentam ao meu lado e me falam dos versos e revelam os segredos que a poética lhes permitiu.

Então eu cantei, mas nem sempre os cantos que queria porque não é minha a poesia. Eu furto de Deus a lírica da vida, furto a paixão dos casais enamorados e a dor dos corações partidos. Da mesma forma que o escultor busca desvendar da pedra seus mistérios , vê-los revelados; da mesma forma que o ourives busca libertar o brilho que a gema bruta esconde: artífices cujo sucesso de suas artes se materializa em luz e forma. Felizes artesãos! Minha arte é mais injusta. Sou poeta, cujo ofício dos versos busca forjar a rima mais perfeita. Aquela que conceda graça a versos brancos e sentimento a corações vazios. Ela virá, envolta em esplendor e glória, ovacionada entre os homens e anjos. Mas a tarefa é árdua: o forno é quente e a forja é tosca, é preciso destreza. Mas a rima virá e inspirará composições para erguê-las como o soneto foi erguido entre as trovas e atravessou os séculos, como foi o alexandrino nas epopéias que marcaram época.

Sim, a métrica perfeita, a rima preciosa; que busca incerta! Tanto labor para nem mesmo achá-las. Bem o sabem os amantes que um dia a procuraram e só encontraram lágrimas. Foram eles iludidos pelos fantasmas da razão que riam e zombavam da tola pretensão humana de compreender o incompreensível, de domar o que é maior do que si mesmo e encontrar razões e atribuir significado ao que não tem sentido. 

Quem, senão os poetas e os corações atentos, ouvirá a melodia que embala canções de rimas ricas e as almas enamoradas pela paixão? Sou seu arauto, precursor que vislumbrará sua vinda e anunciará seus encantos. Sob o rufar dos tambores tocarei os clarins para ovacionar a chegada de tão esperado conviva e nos sentaremos à mesa como amigos para saborear o prazer inebriante do vinho e entoar as canções que ao longo dos séculos encantaram as gerações que precederam nossos pais e, um dia, hão de encantar nossos filhos.



 

15 Odeio as luzes de filmagens

 

Eu odeio as luzes de filmagens. Malditas sejam as luzes de filmagem! Quarenta graus no verão do Rio de janeiro e, enquanto os amantes fazem suas juras apaixonadas sobre o altar, meu corpo transpira severamente sobre o terno grosso de microfibra. as luzes de filmagens não sabem disso e, indiferentes, aquecem toda a igreja já quente pelo verão carioca. Malditas sejam elas por isso!

As damas (sedutoras damas!) apresentam-se ainda mais belas em seus vestidos longos e decotados. Elas também odeiam as luzes de filmagens, mas não sabem disso. Talvez se soubessem que sua maquiagem logo se faria borrada sob a ação nefasta daquelas lâmpadas incandescentes, certamente elas também as odiariam, até mesmo mais do que eu.

É certo que não tardará e logo teremos templos climatizados e as filmadoras não precisarão de tanta luz. Ainda assim meu ódio será perene porque ele acompanha o atrevimento daquele profissional que desconhece o significado de um altar e de modo desconcertante aproxima sua câmera dos noivos e convivas.

Que imenso contraste! Atrás dele encontra-se o fotógrafo. Um senhor de idade com cabelos grisalhos, já experiente pelo tempo. Um artesão que discreto desempenha sua arte sem ofender nossos corpos. Ele está ali, pelos cantos, e, evitando ser visto, caminha. Apenas a procura do melhor ângulo para, no momento preciso, furtar com suas lentes maravilhosas o sentimento mais profundo que se escapa no instante de emoção. Ele está ali, para eternizar momentos que o passar dos anos fatalmente desbotariam da memória.

Já os futuristas, meus desafetos, eles são amigos das luzes de filmagens. Eles repudiam os fotógrafos e todo tipo de artista que de forma artesanal manuseia o belo e detém a invulgar habilidade de sensibilizar o coração humano através da beleza. Vândalos e covardes! Deveriam ser presos e julgados por crimes contra a humanidade por conspirarem contra o patrimônio cultural que povos do mundo todo cultivaram ao longo das gerações. Tudo por que a tecnologia de suas máquinas engenhosas não é capaz de reproduzir aquilo que nos toca a alma. Eles não se conformam que o velho não prestigie suas conquistas e limite suas pretensões. Se comprazem com o mundo frio e acinzentado que criaram e renegam o que fuja da possibilidade de suas criações mirabolantes.

Tolos! Eles não percebem que o mundo em que vivemos está morrendo. A vida que o alimenta desvanece aos poucos sufocada pela indiferença e os atos de maldade. E a cada dia as perdas são maiores e o frio é mais intenso no coração daqueles que pressentem estes mistérios. Mas enquanto este mundo decrépito caminha a passos firmes em direção a sua própria ruína, um grupo de homens determinados desempenha um trabalho silente de forma abnegada. Eles têm a árdua tarefa de restituir ao mundo, através da arte, a beleza que no dia-a-dia se esvai consumida pela ação perversa do mal e dos corações embrutecidos.

Poucos de nós conhecem estas verdades, mas muitos a levam a termo, mesmo sem saber por que. Talvez atentem unicamente a responsabilidade a qual suas almas estão comprometidas desde que um dom maior lhes foi concedido. São eles os artistas: são escultores, músicos e dançarinos, poetas e pintores; são eles guardiões dos tempos idos que através da arte incrementam a nosso mundo decadente a beleza que faz a Terra girar e enche de brilho os olhos encantadores de nossas crianças. Nós estamos lá, no coração das mulheres apaixonadas, nas lágrimas de saudade e no abraço de nossos pais. Estamos colorindo as estrelas e impulsionando o movimento das marés. É o trabalho árduo desses bravos que harmoniza a seqüência dos dias e das estações, é ele que nos dá a esperança para acreditar que o dia seguinte será melhor.

Perseverem, guardiões da beleza e do que é belo. Eu rezo a deus para que tenham sucesso. Para que prossigam e não se rendam a estupidez das luzes de filmagens e dos futuristas. E eu peço ao velho fotógrafo que não desista. Ainda que aquelas malditas luzes queimem todas as suas fotos, uma única que reste guardará consigo os sonhos e expectativas deste casal e de todos que acreditaram em suas juras. Porque a qualquer tempo ela remeterá às lembranças surgidas num dia quente do Rio de Janeiro com as cores que a fantasia de cada um lhe permitir sonhar.



 

16 Um olhar catatônico centrado no portão de embarque

 

Estático, eu mantenho um olhar catatônico centrado no portão de embarque. Ela não está mais lá, eu sei, mas ali meu olhar se perdeu com o último sorriso que ela me concedeu antes de partir. Minha visada ali se fixa como para eternizar na memória os instantes de uma alegria breve e passageira.

Logo o avião partirá e eu ainda estarei aqui. As pessoas sentadas a minha volta percebem a angústia de um homem que se mantém imóvel, de pé. Elas me olham e se calam como que sensibilizadas por uma verdade a qual não são alheias. Eu sei que não, afinal, quem não conhece a dor de uma partida? Quem em um momento como esse não gostaria de também partir? Quem não lhe pediria para ficar? Eu quis dizê-lo, mas atordoado eu só senti as lágrimas nos olhos e meu coração convulsionado. Meus lábios inconstantes se calaram e eu tive novamente à boca um gosto amargo que bem conheço.

Sim, eu conheço bem e por isso sei que quando aquele avião partir, uma parte de meu coração vai com ele e eu sinto que morrerei um pouco. Como nas vezes em que a morte voltou-se para mim e mirou seu olhar no fundo de minha alma. Ah, suas máscaras terríveis! Outrora fora a perda, hoje é a partida e ambos são adversários terríveis. Quantas vezes mais serão? Quantas vezes serei vítima desses caprichos? Não importa. Que venham quantas vezes vierem e que lacerem meu peito e arrebatem minha alma como hoje fui surpreendido com a pureza que é própria dos corações ingênuos. São heróis que não temem se dar e por isso se curvam para serem punidos, mas também exaltado por esta majestade que se ergue como um colosso em duas vertentes formidáveis: uma satisfação deliciosa pelo prazer que constrói, uma dolorosa perda pelo que se vai.

Que alegria foi essa? Por que visitou minha vida e adentrou meu coração sem que lhe pedisse? O rosto amargurado estranha sorrisos e o pensamento arisco teme o que não é melancolia, mas eu não temi. Eu me senti criança, eu me senti rico e poderoso pela chegada deste atrevido. Mas anoiteceu e ela partiu. Em seu lugar fica um vazio frio e incomodo. Essa é a certeza que sua falta agora me faz. É a certeza de algo que tive e perdi.

As mãos ao bolso buscam consolo que não encontram. As lágrimas turvam meu olhar, mas eu não vou chorar. Preciso apoiar-me em alguma coisa porque as pernas fraquejam. É demasiado o peso que eu arrasto como se a mágoa de outros anos retornasse sobre as mesmas lembranças. Antigas amigas! Compartilhem deste vinho envelhecido e acre, que me cheira vinagre e que me amarga a boca. Boca que foi adocicada por seus beijos suaves para entoarem cantigas e declarações que se perderão ao vento e, infelizmente, não te encontrarão.

Encosto-me em um parapeito que guarda plantas e , em uma placa de bronze, as palavras de um poeta, o mesmo poeta que empresta o nome ao aeroporto. Elas decantam uma cidade que eu fiz questão de mostrar-lhe. Queria na verdade, o seu sorriso e se essa era a forma de fazê-lo, eu o faria. Então, concordei com o poeta e declarei esta cidade bela sem saber que só o foi nos dias em que ela esteve aqui. Mas do que importa? Do que me importa essa beleza se outras cidades também a conhecerão? Muito restou consigo e eu tenho a certeza que só eu restarei aqui e sozinho retornarei ao mausoléu fétido que chamo lar e tudo será frio e tristeza nas ruas desta cidade adormecida.

Não, eu não quero ficar, não quero partir e não quero voltar. Quero novamente as canções que ela cantou e os gemidos que balbuciou sobre meus ouvidos tendo os olhos fechados. A noite sussurra estes mesmos gemidos que um dia ouvi e talvez ao anoitecer eu não mais escute. Eu os quero comigo, não quero partir. Meu corpo insiste em ficar e a memória tenta recordar as canções que ela cantou para recontá-las as gerações que estão por vir, mas não as lembro. Agora só resta sua partida. Minhas pernas imóveis, meu olhar perdido, ela não está aqui. Quantas horas já se passaram? Quantos dias se passaram desde que ela partiu e para onde se foi? Que cidade alegre é esta onde ela irá caminhar e será possível ouvir a sua voz suave? E quem a escutará com a doçura dos corações apaixonados? Quem?

A noite avança e o frio é intenso no seio de um inverno indiferente a minha angústia. Sim, o tempo é de fato indiferente e logo desbotará estas lembranças de dor e de saudade como tantas vezes já fizera. Resta-me o vazio e um sorriso ensandecido sobre a face. O corpo entende sua sina e se permite esses lamentos cansados. É a sina maldita dos homens que morrem, mas ainda caminham. Eu bem o sei, conheço o frio desta noite nublada, mas também sei que em algum lugar faz sol. É para lá que sua lembrança abrirá asas e seguirá. Voará como os pássaros jovens e saudáveis que rumam ao norte em formatura. Enquanto isso, o pássaro enfermo se recolhe ao ninho entristecido com as lembranças das primaveras que viveu e que não mais retornarão.



 

17 O velho e seu coração menino

 

Sou um homem velho, entristecido pelo tempo. Os poucos anos de minha juventude acinzentaram minha alma. Hoje me basto da solidão vazia de meu mausoléu úmido, mas tenho um coração menino que teima em jogar jogos que desconhece. Inconseqüente como toda criança, repetidas vezes nos machuca nas mesmas brincadeiras que voltará a brincar com igual alegria. É um menino faceiro, de sentimento indomado cujas travessuras este adulto tenta equivocadamente controlar e sempre sem sucesso.

— Ah, coração menino, já era hora de parar. Que cantigas são estas que cantas convidando as meninas pra dançar? Não sabes que são muitos os corações ariscos e não estão dispostos a brincar? São corações feridos com um certo medo de amar. Ah, meu coração menino, já era tempo de parar!

Eu o advirto, mas ele não me escuta e corre pelas ruas a cantar enquanto o velho homem se recolhe ao frio e fome do seio de sua solidão. Perdidos entre estes opostos, deliramos por caminhos distintos e nossa poesia nos resta carregada de um ruído dissonante porque nos distanciamos e não mais nos encontramos. Esta distância me fere porque eu amo este jovem menino. Amo sua alegria trigueira que não se cansa de cantar e que me levou a incorrer em enganos porque ousei um canto mais profundo quando só conhecíamos a poesia e as travessuras de quem só quer brincar.

Ah, que terrível engano! Foi assim que eu me perdi por reinos que desconheço e ainda sigo a procura de abrigo. Levo esta história de dor que causa encanto e repulsa. Os bardos decantam minha desventura, os poetas recriam meu amor, comumente equivocados pois desconhecem como a angústia e o contentamento se deitam sobre o mesmo leito para chorarem lágrimas distintas.

Oh, amor de despedida e de saudade! Eu prossegui ferido por levar-te, eu me senti sozinho por querer-te. Mas não me arrependo, pois o que me mata é também o que me faz viver. Ele me nutre e me cultiva sob o sol, mas me fere e me molesta frente à lua.

Nestes dois mundos onde vivo e morro delicio-me de um sentimento grandioso que a luz do dia me cobre de uma alegria entusiástica. Que rara vestimenta, que relicário incomparável! Com a graça que tal fortuna concede me sento à sombra do palácio dos reis para entoar cantos de glória em sua homenagem e ser exaltado por aqueles que se admiram de minha ventura.

Mas ao findar o dia, com as vestes embebidas em lágrimas e sonhos, e atormentado pela solidão da noite, retirar-me-ei além dos limites da cidade para acercar-me de andrajosos pedintes cuja semelhança de infortúnio nos torna íntimos em miséria e desgraça.

Contraditórias impressões por algo que é sem dúvida alguma imensamente maior que o homem. Um gigante que ora nos ergue ao céu revestidos de louvor para tão logo nos lançar por terra esmagados por seus braços poderosos.

Entendei todos vós que um dia foram vítimas destes enganos que diante de tais mistérios um homem de imaturos sentimentos encontra facilmente o erro. Erros muitas vezes terríveis, mas, por sua natureza, sempre dignos de um perdão misericordioso por serem nascidos do seio de um coração menino, ainda assustado por não saber amar, mas com a grandeza própria daqueles que estão sempre dispostos a aprender.



 

18 Perdoa-nos, Deus...

 

Perdoe-nos, Deus, pelas vezes em que não sabemos amar e inseguros e com medo da perda cometemos erros. Erros que matam e que nos tornam indignos do amor que sentimos.

Perdoa-nos pela compreensão diminuta de nossas almas que nos faz acreditar que precisamos de mais quando já temos tudo, que somos fracos quando a força nos é inata, que não conseguiremos quando na verdade já o conquistamos.

Perdoa-nos, Deus, pelo pensamento ingrato de não reconhecermos a dádiva sublime concedida, o pensamento leviano de nos julgarmos capazes de sobrepujar o que é por demais forte e por isso somos culpados de nos tornarmos escravos por não saber servir.

Perdoa-nos, sobretudo, quando ao merecer castigo somos poupados e após desonrar-vos ainda nos é dado a oportunidade de amar e ser amados, uma oportunidade de se redimir que quase sempre é desperdiçada entre enganos.

São estes os erros próprios de almas imaturas e acovardadas. Tememos uma luz radiosa, o esplendor de um sentimento tão resplandecente que ofusca nosso olhar acostumado ao escuro sombrio da dor e do cansaço. Olhamos para baixo quando deveríamos mirar ao céu, e rastejamos incapazes ignorando a glória que nos foi dada de voar como o vento.

Perdoa-nos, Deus, quantas vezes forem necessárias até que nosso coração se faça digno de amar. Perdoa pois, como um pai perdoa e ensina um filho. Ensina-nos a amar mais e melhor, a amar intensamente e sem medo. Entenda que somos pequenos e facilmente nos deixamos esmagar por algo tão poderoso. 

Somos apenas crianças, amedrontadas pela força de uma tempestade sedutora que nos envolve sem dizer por que.



 

19 As mulheres que me amaram me traíram

 

Que mulher de sentimento apaixonado e coração sensível não se prostrou enamorada diante dos versos doces de um poeta romântico? No entanto, não é o carinho contido em seus versos o que encanta, mas sim  a intensidade da força de sentimento que as almas sensíveis percebem e que inundam no coração do poeta a ponto de feri-lo.

Eu fui amado por estas mulheres: pela jovem enamorada que trancada em seu quarto suspirou meus versos e pela professora que ainda hoje ministra com paixão aulas de literatura para alunas que também querem aprender a me amar.

Sim, eu fui amado por estas mulheres, mas elas me traíram! Traíram-me com o poeta que escreveu os versos doces pelos quais se apaixonaram. O suicida mudo que rasteja inebriado pelos becos imundos da cidade elas não reconheceram. Talvez tivessem pena, talvez tivessem medo, mas elas nunca, nunca o conheceram e para mim é certo que jamais conhecerão. 



 

20

 

Ah, mulher que amo, a quem tratei de reservar todo meu carinho. A ternura que te guardo não permite que eu te traga a meu mundo sujo onde lamento e sofro. Eu sequer permito que o encontres porque  mereces ser feliz e não há felicidade nos tons cinzas com que eu vejo as luzes da cidade.

Ainda hoje eu te protejo do teu próprio amor e por isso eu não te pedi que ficasse. Mas quantas vezes eu quis, quantas vezes eu desejo e falo. Então tu te sentas ao meu lado e incorrendo neste erro eu sorrio, mas não é para mim que se encaminha teu sorriso. Tu és enganada por um infiel amigo que insiste em declamar com eloqüência os versos que eu chorei sozinho.

Ah, dissimulado amigo! Por que se comprazem as meninas em te oferecer abrigo? Pensam-te um artista a compor a vida em cores ricas? Fogueira de mentiras que não tarda em consumir-se neste mundo de armadilhas: um mundo frio onde vivo e que, por vezes, tu escapas: mas por vezes apenas.

Mas não te culpes, minha amada, que muito mereces ser feliz. Não te culpes porque eu compartilhei o prazer de teus lábios e desfrutei o doce dos teus carinhos muitos. Doçura pouca a que ainda me permito em vida. E não mais que isso.

Então te peço, minha senhora, esqueça o poeta e busque aos trovadores e artistas que cantarão canções para te alegrar a vida. Eu os admiro, músicos e pintores que tornam o mundo mais formoso, mais bonito. Tal qual fora para ti o meu amigo, mas não eu. Não o andarilho que percorre um mundo sujo onde prefere estar sozinho. Deixa-me aqui tombado nestes becos, sujos leitos para ratos que infectam a cidade. 



 

21 Seguirei ao norte

 

Há uma cidade ao norte onde habitam princesas e guerreiros. Não importa o quão distante estejam, eles ainda vivem por lá. Os jovens guerreiros lutam por seus amores e os mais velhos ainda acreditam em glória. Já as princesas, adoráveis donzelas, estas inspiram a ambos com sua beleza e virtude.

Ah, essa cidade maravilhosa que desconheço! Nunca a vi, mas sei que para lá migram os pássaros quando do inverno. Sei o caminho, conheço o rumo dos barcos e hei de navegar a fim de desbravar estes mistérios que a mim se revelam auspiciosos. Eu vou determinado decifrar estes segredos e revelar as verdades deste sonho em que acredito.

É longa a jornada e árdua a tarefa, eu sei. Também sei que há grandes desafios por aqui, mas a honra a que buscam estes guerreiros me fascina e me encanta a paixão que motiva essas princesas e sinto que nossos sonhos são iguais. Sim, estou disposto a lutar uma luta que não é minha, e a pintar meu corpo, e a derramar meu sangue. Estou disposto a fazê-lo por algo que o valha, pela glória a que buscam estes guerreiros ou pelo amor a que anseiam estas princesas.

Ice nossas velas, lance-nos ao mar! Já nos basta o vento, já nos basta navegar! Treme Oceano ardiloso! Acato o desafio que nos lança e nossas velas já se inflam de coragem. É de sonho e de encanto esta viagem, mas não vou sozinho: seguirei estes pássaros: o adoecido então curado e também os jovens, ansiosos pela aventura e o mistério de voar.



 

22 Sobre maçãs e  coelhos

 

A maçã, que nunca foi coelho, pode vir a se tornar coelho? Foi essa minha primeira pergunta. Mas, se ela poder vir a ser coelho, significa que ela será coelho? E se ela era maçã, mas se tornou coelho, ele se manterá coelho, ou voltará a ser maçã? Foram estas as outras.

Enfim, para simplificar: maçãs serão sempre maçãs ou podem ser tornar coelhos e, uma vez coelhos, sempre coelhos ou podem retornar ao estado original de maçã?

Maçãs e coelhos! Que inquietante dilema! Aqui estão todos os meus erros e também todas as minhas aspirações. Nele resta toda a disputa entre uma realidade e o sonho, entre o que se é e o que se quer ser. E eu quero ser mais, quero ser mais melhor por você, mas em minha natureza eu não sei se posso, ainda que eu sinta que sou capaz de qualquer coisa para ter você para mim. 

Mas do que importa esse mero querer? A maçã quer ser coelho, mas o querer da maçã representa essa possibilidade? E a possibilidade, devido a natureza da maçã, lhe permitirá a constância em um estado distinto ao de sua natureza?

Bem antes de Nietzsche, sua resposta se aproxima muito do pensamento de Guilherme de Ockham, frade medieval que a história do direito me apresentou ainda nos bancos da UERJ.

Em Ockham, a identidade que possuímos da maçã compõem a idéia universal que conhecemos por maçã (forma, cor, sabor), mas esse conceito é mero Nominalismo. Inventamos essa idéia de “maçã” para classificarmos de modo universal tudo que se assemelha em forma, cor, sabor; no entanto, cada um desses objetos é único em sua singularidade, é algo novo que a princípio desconhecemos. 

Em nossos conceitos “universal” acerca da idéia “maçã”, elas não se transformam em coelho. No entanto, do grupo universal das maçãs, um ente “singular”, individualizado, sim, pode possuir esta incrível peculiaridade: a metamorfose. Até porque, limitados a compreensão da nossa realidade, este ente nos é desconhecido, bem como a essência do seu ser e a potência do que pode vir a se tornar, sobretudo pela possibilidade da intervenção divina.

Logo, por Guilherme de Ockham, a maçã pode transformar-se em coelho, mas uma maçã específica, singular, porque o conceito “universal” maçã não existe realmente, senão no imaginário coletivo como um conjunto de características que classifica entidades que, em verdade, são sempre distintas, singulares, únicas.

Por outro lado, a crítica ao Nominalismo de Ockham depreende que aquilo que caracteriza nosso conceito de maçã (forma, cor, sabor), condiciona essa essência do ser. Em potência, essa entidade particular, maçã, nunca poderá voar, pois caso possa no exercício de sua potência voar, revelará jamais em essência ter sido maçã, talvez fosse ovo, mas em potência a maçã não detém a característica de voar, tampouco de assumir as características do que entendemos por coelho. 

Em  crítica a Ockham, os conceitos fazem parte do mundo das coisas de forma objetiva, uma vez que não pode ser mera coincidência que todo pai e filho de coelho tenham orelhas grandes. Logo, a classe coelho é algo objetivo que se manifesta e se solidifica em suas características como, por exemplo, orelhas grandes, qualidade sine qua non para a determinação da entidade “coelho”. Assim sendo, para os críticos ao Nominalismo, esse coelho não será maçã de forma alguma e vice e versa.

Ao fim das reflexões filosóficas, eu não cheguei às minhas verdades, senão pela poesia. Por isso sei que este discurso é só pelo amor ao debate, ademais, começo a ter ciúmes desses homens que você sempre fala e pelos quais parece estar apaixonada, como o insano Dr. Frederik. O fato é que pouco sei profundamente sobre o mundo dos filósofos, pouco além de Sêneca e Schopenhauer, amigos que compartilharam comigo de um mundo desesperançado para me converteram em discípulo fiel. 

Mas saiba que tua paixão pelo mundo das idéias me está encantando e sinto-me seduzido por estes caminhos por onde você passeia com tanta graça e me convida a também desfrutar. Ensaiei aqui alguns acordes, mas ainda não passo de maçã e, a respeito dos coelhos, contigo eu tenho muito mais a aprender do que a ensinar. Ainda mais se enveredo pela filosofia, esse sinuoso caminho por onde tu estendes tuas mãos me convidando aos primeiros passos.

Vou contigo, mas comigo levo a poesia para também te apresentar o meu mundo. Uni-lo ao teu para torná-lo uno. E às margens de suas trilhas, que em meu pensar só existirão por ti, quero plantar flores, quero colorir e tapear de perfumes muitos. Quero ser o coelho que vai correr livre por estes campos onde tu caminhas, posto que a maçã já envelhecida sente suas fibras romperem.  

Mas porque resta limitada a cores e formas o existir da maçã? Se ela saltar e comer cenouras não será também um coelho? Mas que força lhe permitirá os saltos se não possui as pernas para fazê-lo? Ela o pode sim em fantasia, essa força que a tudo reveste de cores e de luzes, que em beijos e carinhos brinca com uma poesia radiante que a tudo quer mais belo, que a tudo pode fazer crer. Ah, essas duas apaixonadas! É o seu amor que tudo permite, que leva a primavera a países distantes para derreter-lhes o gelo; que tapeia de cores os prados secos através de flores; que permite a corações amargurados sentimentos sublimes: Sim, com seu amor eles tudo podem!

Então a maçã se tornará coelho! E terá orelhas e comerá cenouras! E ela saltará mais longe que estes felpudos porque a fantasia lhe permite o sonho, sonho que faz brilhar os olhos dos apaixonados e fazer crer que tudo é possível! Faz crer que os invernos não são tão frios, que os continentes não estão tão distantes e que o futuro pode ser diferente de um passado que tantas vezes se repetiu. Se a maçã acreditar na fantasias ela resistirá a força dos elementos, e correrá com os coelhos, e voará com pássaros para cantar cantos de glória que enalteçam o amor, que falem de poesia e que ensinem os jovens apaixonados a amarem, mas de um jeito diferente, sem machucar o coração daqueles que amam.

© 2013 Igor Anatoli                                   Created at Razzoit Studios - Berlin, Germany.     

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